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Salvo pela “Lealdade” Somente? Sobre uma Nova Tentativa de Revisar a Reforma

Este ano [2017] marca o 500º aniversário da afixação das Noventa e Cinco Teses de Martinho Lutero na cidade de Wittenberg. Uma pergunta que surge é se os Cinco Solas — que corretamente captura algumas das maiores ênfases da Reforma — deveriam ser matizados após 500 anos de reflexão e estudo.

Matthew Bates, um jovem estudioso talentoso que ensina na Quincy University, acredita que um ajustamento seria saudável, sugerindo que revisemos “fé somente” e reformulássemos com o slogan “lealdade somente”. Como aqueles que creem na Escritura somente, deveríamos estar abertos para reformar e reformular o que nos sustentamos no passado, em Bates nos desafia a olhar para Bíblia novamente

Lealdade e o Evangelho

Em seu novo livro, Salvation by Allegiance Alone: Rethinking Faith, Works, and the Gospel of Jesus the King [Salvação por lealdade somente: repensando fé, obras e o evangelho de Jesus o Rei — em tradução livre], Bates considera novamente a natureza da salvação e do evangelho. Ele argumenta que “fé” e “crença” nem sempre são os melhores termos para traduzir pistis e pisteuō no Novo Testamento. Em vez disso, quando se trata de salvação, seria melhor falar em lealdade a Jesus como rei. Assim, essa fé tem a ideia de fidelidade. A vantagem de lealdade é que ela inclui a ideia de que as boas obras são necessárias para a salvação final. Bates corretamente mantém que a fé não pode ser definida como um simples assentimento intelectual, um salto no escuro, ou um pensamento positivo.

A noção de que fé é melhor traduzida por “lealdade” é apoiada, segundo Bates, quando se olha as evidências na literatura judaica do Segundo Templo. Então, ele argumenta em favor desse significado nos textos paulinos principais, dizendo que as noções de assentimento mental, “lealdade professada” e “lealdade encarnada” representam melhor o que se entende por salvação ou justificação pela pistis. Portanto, Paulo ensina “lealdade encarnada” a Jesus com Rei. Bates preferes “lealdade” à “confiança” uma vez que ele pensa que essa última não captura suficientemente a lealdade a Jesus como rei entronizado. Segundo Bates, seremos julgados no último dia sobre se fomos ou não genuinamente leais Jesus, não se mantivemos uma lista detalhada de mandamentos.

Segundo Bates argumenta, o evangelho não pode ser reduzido à fórmula “Jesus morreu por nossos pecados”, já que o centro do evangelho é a verdade de que Jesus é Rei. Ele é o Senhor ressuscitado e entronizado acima de tudo, e somos chamados a expressar nossa lealdade a ele como nosso Senhor. De acordo com Bates, existem oito elementos no Evangelho:

1. Jesus preexistiu com o Pai;

2. Ele encarnou e cumpriu a promessa de Davi;

3. Ele morreu por nossos pecados segundo as Escrituras;

4. Ele foi sepultado;

5. Ele ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras;

6. Ele apareceu a muitos, mostrando que ressuscitara dentre os mortos

Particularmente, Bates enfatiza que Jesus está entronizado como Rei e Messias sobre todo o mundo.

Salvação como um dom e a Nova Criação

Bates enfatiza que não podemos ganhar a salvação. Ela é um dom de Deus. Ao mesmo tempo, todavia, ele rejeita a eleição individual e afirma que a eleição corporativa captura o testemunho com mais precisão. Em todo caso, a graça é efetiva e transforma nossas vidas. Embora os protestantes frequentemente digam que nossas obras são a evidência e frutos necessários de nossa fé, é melhor, diz Bates, falar de lealdade a Jesus como rei entronizado e reinando e, assim, as obras são “essenciais para a salvação final” (p. 110).

Bates discorda da noção de que os cristãos simplesmente vão para o céu após a morte. A imagem do Novo Testamento tem mais vigor e força que a concepção popular de céu. Os crentes serão levantados dentre os mortos e viverão como cidadãos na nova criação. Nós aguardamos um universo transformado e esperamos reinar com o Rei Jesus para cumprir o propósito para o qual Deus originalmente criou os seres humanos. Nós não seremos criaturas etéreas flutuando nas nuvens, mas pessoas com corpos transformados e imortais residindo em um novo universo.

Bates vê corretamente como a entronização com Rei antecipando o novo universo onde reinaremos com ele e submisso a ele. Bates também sugere que toda verdade e bem que temos feito nesse mundo será preservado na nova criação vindoura. Como aqueles criados à imagem de Deus, mesmo agora temos propósito em nossa vida. Se seguirmos o caminho da idolatria — se deixarmos de viver do modo que fomos designados como feitos à imagem de Deus — desfiguraremos o mundo e causaremos danos a outros seres humanos. Jesus é a completa imagem de Deus, e seremos conformados à sua imagem, ainda que haja alguma descontinuidade entre nós como seres humanos, desde que Jesus é o rei exaltado e entronizado.

Justificação

Quando se trata da justificação, Bates a fundamenta na vindicação de Jesus. Jesus foi condenado como um pretendente messiânico, e sua morte na cruz significa para os líderes religiosos judeus que ele foi amaldiçoado por Deus. No entanto, Deus reverteu o julgamento daqueles que condenaram Jesus e demonstrou sua vindicação (justificação) ao ressuscitá-lo de entre os mortos. Os cristãos são também justificados (justos com Deus) quando eles são incorporados em Cristo. Aqueles que pertencem a Cristo através da união com ele são declarados estar justos com Deus, por causa da vindicação de Jesus que é deles também.

Bates também questiona a ordem da salvação (ordo salutis), assunto comum nos círculos reformados, questionando que ela é mais devedora da teologia sistemática do que da teologia bíblica. Ele defende a imputação no sentido de que os crentes estão unidos com Cristo como nosso rei entronizado. Embora Bates concorde com a imputação, ele também sugere que a imputação pode ser perdida, assim, alguns daqueles que são agora justificados, segundo Bates, podem realmente perder a condição de justificados e acabar sofrendo a condenação eterna. Ele diz que a justificação é forense, mas também diz que a justiça é infundida (embora a infusão não seja gradual, mas instantânea após a declaração de lealdade).

Mantendo os Antigos Caminhos

Salvation by Allegiance Alone é cheio de informações úteis, e falta espaço para interagir com todos os escritos de Bates. Sua ênfase sobre a submissão a Jesus como rei, o entronizado Senhor do universo, capta bem a ênfase do Novo Testamento sobre o que significa ser um cristão. Ele também nos relembra que nossas vidas interessam nesse mundo, e que a idolatria não é uma abstração, mas aparece no modo como vivemos nossas vidas. Nós não somos criaturas incorpóreas; somos criaturas de carne e sangue que antecipam a vida na nova criação. Bates também diz, com razão, que o evangelho é mais amplo do que simplesmente “receber Jesus como Salvador”, e ele enfatiza a graça de Deus em nos salvar. Eu também simpatizo com sua ênfase sobre lealdade; muitos protestantes reduzem a fé a simples acordo verbal. Muitos estão equivocadamente seguros de que gozarão da vida eterna sem qualquer obediência se eles aceitarem Jesus como Salvador. Bates, de modo convincente, demonstra que tal leitura não está de acordo com a ênfase do Novo Testamento sobre as obras, pois as obras são claramente essenciais para recebimento da vida eterna. Devemos manter nossa fé até o fim para sermos salvos.

Apesar das vantagens da palavra “lealdade”, contudo, ainda acredito que “confiança” ou “fé” é muito melhor, já que “lealdade” coloca a ênfase diretamente no agente humano — sobre o que fazemos, sobre o nosso compromisso. “Lealdade” capta a importância das boas obras subsequentes, mas também deixa algo de fora, pois a fé é fundamentalmente receptiva. Recebemos o dom da justiça com as mãos vazias, e essa concepção está ausente quando colocamos “lealdade” no lugar da “fé”. Da mesma forma, a noção de que a verdadeira fé ou confiança inevitavelmente conduz às boas obras é tratada de uma maneira adequada com o testemunho do Novo Testamento.

Eu também argumentaria que Bates erroneamente separa a eleição corporativa da eleição individual. A tentativa de criar um lugar para a eleição corporativa além da eleição individual, com argumentei em outro lugar , é logicamente falha e não tem fundamento bíblico. Bates diz que nem um único versículo apoia a eleição individual. Essa afirmação é surpreendente, especialmente quando consideramos conceitos e não palavras. Eu indicaria João 6.35–44 como um exemplo claro. E, apesar da afirmação de Bates, Romanos 9.6–23 — com suas muitas formas singulares e contextos soteriológicos — também apoia a eleição individual. Certamente que a eleição corporativa tem um longo legado nos círculos evangélicos, mas todas as autoridades reformadas creem na eleição individual.

Além disso, julgo que a noção de uma ordo salutis tem mais mérito do que Bates afirma (veja Romanos 8.29,30). Corretamente ele nos lembra que precisamos fundamentar nossa perspectiva na Escritura, embora eu sugira que o entendimento típico reformado está correto aqui. Em termos de justificação, eu não creio que Bates ofereça a clareza que precisamos. De acordo com ele, justificação é forense e transformativa, incluindo imputação e infusão, e a justiça que temos pode acabar de se perdendo. Aprecio profundamente a afirmação de Bates de que precisamos viver vidas transformadas como discípulos do Rei Jesus, mas sua perspectiva de justificação e obras unidas afasta-se do testemunho da Escritura. Apesar de muitas ideias excelentes no livro, o velho caminho é mais claro e, creio, biblicamente justificado.

Fé somente e os Cinco Solas

Embora a verdade de que somos justificados pela fé somente não pode ser defendida aqui em detalhes, talvez ajudará refletir acerca de um ou dois textos e algumas implicações teológicas. Considere, por exemplo, Esios 2.8–10, que apreende a famosa soteriologia de Paulo e onde claramente ensina que somos salvos pela graça por meio da fé. Eu sugeriria que “fé” apreende mais adequadamente o significado de pistis (que Paulo usa) que “lealdade”, porque “fé” é oposta a “obras” no texto. As obras são excluídas porque, se a salvação vem por meio delas, estaríamos propensos a nos gloriar. Vemos aqui um contraste entre agir e descansar. Assim, o termo “lealdade” não funciona tão bem porque, novamente, ele coloca a ênfase no compromisso humano, enquanto “fé” transmite confiança no que Deus tem feito por nós em Jesus Cristo.

Mas a noção de confiar e receber anula a importância das boas obras, as quais Bates tão prestativamente enfatiza? Como Paulo diz, certamente que não! Esios 2.10 mostra as boas obras que os crentes farão. Tais obras não nos qualificam para salvação, mas são frutos de sermos novas criaturas em Cristo Jesus. As mãos vazias com as quais recebemos Jesus como Senhor e Salvador não permanecem vazias. Em virtude de estarmos em Cristo, somos capacitados a viver uma nova vida que agrada a Deus. A genuína confiança em Deus — a fé salvadora em Cristo — inevitavelmente conduz à nova vida, manifestando o fruto do Espírito.

A história da mulher pecadora em Lucas 7.36–50 ilustra a mesma verdade. Não sabemos exatamente qual era o seu pecado, mas ele era público e, provavelmente, sexual. Ela demonstra seu amor por Jesus chorando aos seus pés, enxugando-os com seus cabelos, e derramando perfume. Jesus proclama que seus pecados estão perdoados (Lucas 7.47), e a história termina com as seguintes palavras: “tua fé te salvou; vá em paz” (Lucas 7.50). Novamente, penso que a palavra “fé” é melhor que “lealdade”. Sim, ela foi dedicada a Jesus como seu Rei. Ainda assim, o ponto principal da história é que ela confiou em Jesus para o perdão de seus pecados. Ela veio a ele com as mãos vazias, e o amor e devoção que se seguiram dela foram um resultado do perdão que ela havia recebido.

Somente a fé, como vimos em Esios 2, realça a graça somente. A graça e a bondade de Deus nos salva por meio da obra expiatória de Jesus como nosso Senhor crucificado e ressurreto. Mas, como nossa fé nos salva? Não somos salvos por nossa fé per si. A fé nos salva por causa de seu objeto — porque por meio da fé estamos unidos a Jesus Cristo, e sua justiça torna-se nossa.

Em outras palavras, a fé somente implica Cristo somente! E se, pela graça, as mãos da fé recebem Cristo para justiça, então toda a glória é dada a Deus pela salvação. Somos salvos pela graça somente, por meio da fé somente, com base na obra de Cristo somente, para glória de Deus somente. E, claro, derivamos essas verdades das Escrituras somente.

O termo “lealdade”, portanto, embora útil em alguns aspectos, coloca a ênfase no lugar errado e, assim, eu creio que “somente a fé” passa no teste do tempo, em representar fielmente o ensinamento das Escrituras.

Tradução: Gaspar de Souza

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