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Águas paradas

As águas paradas de nossa vida podem permitir uma avaliação geral que nos faça entender melhor aquilo que é relevante para nós

Águas paradas podem ser um bem ou um mal. Os chineses têm um provérbio alertando que “água parada apodrece”. Daí, em tempos de lockdown, vale o cuidado de não se deixar estagnado. Faça alguma coisa! Arrume a casa, estude, leia, ajude alguém… mas não fique parado.

Há, contudo, uma outra concepção de “águas paradas”: aquilo que ocorre quando interrompemos a correria do cotidiano e temos um pouco de paz e serenidade, de quietude, permitindo que a poeira baixe, que o cérebro alcance ondas alfa, que as coisas fiquem mais silenciosas. O efeito disso pode ser a clareza, com tudo de bom e ruim que esse fenômeno traz: olhar a realidade de forma crua e objetiva. Eu desejo ao leitor que aproveite as “águas paradas”. Como não temos muito a opção, vamos aproveitar o momento para extrair dele alguma sabedoria.

As águas paradas podem trazer conclusões assustadoras: na China, explodiu o número de divórcios após o término do confinamento. Será que a convivência maior e os nervos à flor da pele foram mal administrados ou talvez apenas revelaram verdades que o gira-mundo impedia confrontar?

As águas paradas de nossa vida podem permitir uma avaliação geral que nos faça entender melhor aquilo que é relevante para nós. A forçada percepção de o quanto somos frágeis e vulneráveis como pessoas e espécie pode nos servir para reorganizar nossas prioridades. É nessa calmaria que podemos ver, na água clara, as joias que perdemos e estão no fundo à nossa espera. Então, aproveite as águas paradas, olhe o fundo do lago, do rio, do canal onde passa, determine aquilo que é realmente importante. Pegue o momento! E se prepare, pois cedo ou tarde vamos ter mais barcos rodando por Veneza.

Sim, uma hora o mundo tem que voltar a girar. Certamente o que virá será diferente, pois em grau maior ou menor os acontecimentos e a pandemia irão mudar nossa forma de interpretar a vida. E que ninguém ouse achar que a água parada deve ser eterna. Água parada pode ser ótimo, mas se durar demais apodrece.

Alguns elogiam a clareza da água e do ar em Veneza, achando que o mundo é melhor assim. Nesse passo, devemos fugir do sentimentalismo e das quimeras: Veneza existe para ter vida, e para ser visitada também! Podemos até reduzir o número de visitas, como se faz em Fernando de Noronha e no Arquipélago de Abrolhos, mas não podemos deixar a vida tão intocada que sua beleza não seja apreciada. Uma linda maçã deve ser saboreada, e não deixada ao relento. Maçã que não se come, se perde.

Você precisa de dias de calmaria, de água parada, para descansar, refletir, colher a criatividade e os hormônios do ócio e da leveza, sim. Mas também precisa mover as águas, pois “água parada não move o moinho”. Nessa linha, vale mencionar que a ideia de “mover as águas” está nos Evangelhos: de tempos em tempos um anjo agitava as águas do tanque de Betesda e isso produzia cura. Eis aí sabedoria: de tempos em tempos, águas paradas, e, de tempos em tempos, águas movidas. É no girar da água que se produz eletricidade. Águas calmas produzem bons filósofos, mas apenas as tormentosas, bons marinheiros. E não queira segurança demais, pois, já foi dito também: “Os navios ficam seguros nos portos, mas não é para isso que foram feitos os navios”.

E, se em algum momento você não souber o que fazer, ou precisar de paz extra, ou alguma cura, lembre-se que ainda há a Água da Vida, Jesus Cristo, água que quando se experimenta nunca mais se tem sede. Foi nele que encontrei paz, seja nas águas paradas, seja nas águas agitadas. E você? Onde busca paz? Aproveite as águas paradas para refletir sobre isso.

Terminando, citarei outro provérbio chinês: “Das nuvens mais negras cai a água mais límpida e fecunda”. Que estes tempos de tormenta que passamos produzam água boa. Só depende de você: aproveite o melhor da água que estiver parada, para buscar clareza e serenidade, e da água que gira, trazendo energia e eletricidade. Aprenda a transitar nesses mundos para ter paz e trabalho, pois precisamos de ambos para fazer a grande travessia do oceano dos dias.


William Douglas é juiz federal, professor universitário e escritor.

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